15 de outubro de 2011

Constatações.


〪Os dióspiros são, com a certeza possível de quem (ainda) não provou todos os frutos do mundo, os meus preferidos.

〪Adoro comer mel à colherada...e leite condensado...e Nutella ;)

〪São quase 2h da manhã, sábado, 15 de Outubro, e eu acabo de passear o meu cão de Havaianas, saia de algodão e top de alcinhas. Era bem capaz de viver assim (quase) o ano inteiro. Aliás, o meu calendário ideal teria 5 meses de Primavera (Janeiro a Maio), 5 meses de Verão (Junho a Outubro), 1 mês de Outono (Novembro) e outro de Inverno (Dezembro). Mas com todas as características de cada estação, assim uma coisa à séria - e com neve no Natal, de preferência.

14 de outubro de 2011

...




Ela tem-me salvo os dias. Esta voz, que me continua a arrepiar como muito poucas. Ouço-a enquanto trabalho e choro, choro muito. Não sei onde guardo tantas lágrimas. Trabalho e choro. E escrevo - não aqui, mas onde sei que as minhas palavras estão a salvo. Talvez um dia lhes dê outro rumo que não a vida solitária que têm levado, guardadas algures por entre os vestígios da minha existência. Por agora, agarro-me ao que tenho e tento viver um dia de cada vez. Não está fácil, mas melhores dias têm que estar algures mais à frente no caminho. Por vezes falham-me as forças, apetece-me desistir, deixar correr as águas do rio e sentar-me na margem, quietinha, sem pensar em mais nada. Mas não posso, nem quero, em abono da verdade. Quero correr atrás, conquistar sonhos, deixar pegadas, ser feliz. Nunca precisei de muito - sou pelas coisas simples, que são tantas vezes as mais difíceis de conseguir, pois não há dinheiro que as compre. Acredito que sou capaz de muito mais, nunca tive medo de arregaçar as mangas e ir à luta, da mesma forma que o trabalho nunca me assustou, fosse ele qual fosse. Só peço para ter a energia suficiente e a sabedoria necessária para atravessar esta tempestade que se abateu sobre as nossas vidas. O resto eu sei que tenho, mesmo que meio adormecido dentro de mim - a dor, a tristeza e a frustração podem não matar, mas moem-nos a alma até a deixar como um fantasma daquilo que já fomos um dia. Preciso de paz. E de uma boa noite de sono. O resto eu tenho, eu sei que tenho.

13 de outubro de 2011

Somente.

Eu quero uma licença de dormir,
perdão para descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

- Adélia Prado
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12 de outubro de 2011

Cristo Redentor...



...braços abertos sobre a Guanabara.



Faz hoje 80 anos. Abençoa, cuida e guarda uma das cidades da minha vida - ainda que nunca lá tenha estado. Desde que me conheço por gente que sinto o coração partido ao meio e metade da alma do outro lado do oceano. Não sei explicar melhor do que isto...dizem-me que é o chamamento do sangue, o apelo das origens e de uma raiz que é também a minha. Um dia, sei (sinto!) que está para breve, todos os pontos se vão ligar e eu vou poder, finalmente, completar uma viagem que os meus antepassados começaram. Devo isso a muita gente, mas, acima de tudo, a mim mesma. Há que fechar o círculo e achar a última peça do puzzle. De certa forma, sempre soube que é esse o meu destino.

11 de outubro de 2011

Estórias Abensonhadas

 Mia Couto - Prémio Eduardo Lourenço 2011


Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida

Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos
  
Ser, parecer, in Raiz de Orvalho e outros poemas



Vivia em ilha ventada, onde mais ninguém. Chamava-se Bartolominha, era minha avó favorita. O lugar dela era mais arejado que o céu, exposto ao longe e ao esquecer. Seu marido, Bastante António, sempre fora o faroleiro. Exercia aquelas luzes, noite adentro, sem que nenhuma vez tenha faltado no seu alto posto. Mesmo sem salário durante consecutivos anos, ele se manteve em fiel actividade. Esqueceram-se dele ali, os dos serviços centrais, lá onde o dinheiro brilha e a gente apodrece. Impassível, sem se queixumar, o avô Bastante se impunha a si mesmo, infalível, essa missão de iluminar as grandes rochas da costa. Nunca por seu lapso barco algum desfaleceu de encontro à rebentação.
De pouco lhe valeu tanta diligência: Bastante António morreu quando subia a enorme escada em caracol. Seu corpo subia mais rápido que o coração. Num segundo, essa intermitente luz de dentro deixou de lhe iluminar o peito. A notícia chegou-nos anos depois quando um ocasional barco passou por nossa cidade.
A família, de pronto, se fez ao mar. Havia que resgatar Bartolominha. A avó não podia ficar assim sem amparo naquela tão distante solidão. Acompanhei os restantes nesta missão de recuperar nossa idosa parente. Muito quem chorava era minha mãe, sua dilecta filha. Durante a viagem de barco, ela se inconsolava: quem sabe a avó, entretanto, já desistira de viver e não tinha tido quem a enterrasse?
Desembarcámos com o peito enrodilhado, olhando a medo os recantos do sítio. Suspirámos alto quando Bartolominha veio às rochas, envolta em sua capulana, a mesma que eu nela sempre recordava. Quando lhe falámos em sair dali, ela se contrafez. Afinal, viéramos buscá-la? Pois que fossemos na mesma via de regresso, que ela dali não arredava. Argumentou meu pai que ela não podia viver isolada de tudo, em lugar tão despertencido de gente. Falou meu tio que ali não chegava nem desembarcava notícia. Minha mãe acrescentou muitas lágrimas, com alma entalada na garganta.
Bartolominha respondeu, sem palavra, apontando a campa junto ao farol. Depois, se afastou e ficou de costas olhando o mar. Era como se, em silêncio, nos convocasse. Alinhámos com ela, perfilados frente ao oceano. Que queria ela dizer, assim muda e queda? Usava o oceano como argumento? Meu tio ainda insistiu:
– Quem lhe arranja sustento?
Nos mostrou,então, o pelicano. Era um bicho que ela criara desde pequenino. A ave se afeiçoara, mais doméstica que um familiar. A pontos de ir e vir e, todos os dias, lhe trazer peixe para ela se refeiçoar.
– Tenho que ficar aqui, regar o farol. Foi o meu bastante que me pediu para eu não deixar emagrecer este farol.
Regressámos sem a conseguir demover. Eu fiquei com o pensamento roendo-me o sono. Durante noites fui roubado ao descanso. Podia eu deixar o assunto assim? Não, eu não podia desistir.
E voltei a visitar a ilha. Demorei-me ali uns tantos dias. Juntei argumento, aliciei convite. A avó que viesse que eu lhe daria guarida e aconchego em minha nova casa. Mas nada. O mesmo sorriso desdenhoso lhe vinha aos lábios. Depois lhe sugeri que viesse comigo viajar por terras lindas.
– Só quero viajar quando for completamente cega.
Estranhei. Nem respondi, esperando que mais se explicasse. E sim, ela continuou:
– É que eu vivi tudo tão bonito que só quero visitar lugares que já estejam dentro de mim.
Arrumei a vontade. A velha senhora tinha raízes fundas. Em desfecho de conversa, eu lhe disse que, quando fosse, no dia seguinte, deixaria um barco amarrado nas árvores da praia. Para o que desse. Ela encolheu os ombros, enjeitando de vez a minha teimosia.
Nessa noite, jantámos em silêncio sob o peso de uma não dita despedida. Bartolominha proclamou o seu cansaço e anunciou que se ia retirar para seu quarto. Fizera do farol o seu aposento. Ela subiu os primeiros degraus e, antes de desaparecer no escuro, chamou o pelicano. Deitava-se com o bicho. Dormiam, inclusive, na mesma cama. Ele lhe estendia as asas e ela adormecia abraçada ao passarão. Dizia que assim seu corpo aprenderia a arte de voar.
– Uma dessas tardes vou com ele, por esses aforas.
Deitei-me olhando as estrelas como buracos no fundo preto de um tecto. Me deixei adormecer mas logo fui despertado por um estranho pesadelo. Na realidade, eu não sonhava com nada. Nem mesmo entendia o porquê desse meu impulso ao erguer-me da esteira. Era como se eu fosse guiado por vozes, escuro adentro. Me dirigi à campa e raspei as areias com os pés. Descobri então que o buraco era raso: a sepultura não tinha fundura nenhuma. Quando me debrucei sobre os restos vi os ossos que se esfarelavam. Eram ossos de um pássaro. E um muito volumoso bico.
O meu coração bateu, desordenado. Subi as escadas, tão veloz que as tonturas quase me roubaram do mundo. Não cheguei a tempo. Junto ao patamar do farol ainda toquei uma pena branca, esvoadiça. Fiquei na varanda com o vento me vestindo a alma. Num certo momento, ainda pensei vislumbrar Bartolominha revoando como se dançasse na fugaz intermitência do farol. Desde essa noite sou o faroleiro da ilha do avô Bastante. E aceno quando passam as grandes aves.

Bartolominha e o pelicano, in Na berma de nenhuma estrada